Apesar de não ser um leitor assíduo de poesia, sempre gostei desse gênero literário precioso e já até me aventurei por ele algumas poucas vezes.
A poesia transcende a realidade e arranja palavras para criar significados que não existem numa prosa comum. Talvez por isso, tenha se tornado um clichê questionar se a realidade acaba com a poesia. Eu proponho pensarmos no inverso: será que a poesia não acaba com a realidade?
A poesia transcende a realidade e arranja palavras para criar significados que não existem numa prosa comum. Talvez por isso, tenha se tornado um clichê questionar se a realidade acaba com a poesia. Eu proponho pensarmos no inverso: será que a poesia não acaba com a realidade?
Há algumas semanas, assisti numa sessão dupla, Antes do Amanhecer e Antes do Por do Sol dois ótimos filmes de Richard Linklater. Separados por um hiato de nove anos pra quem assistiu o primeiro filme em 1995, pra mim eles são uma coisa só, contínua. Foi assistindo a esse conjunto que me dei conta do quanto a poesia pode ser destrutiva na prática. Quando me refiro à poesia, no entanto, estou falando de toda idealização, de toda construção romântica, de toda criação de um universo fantástico, de tudo que representa algo mágico e intangível.
Em Antes do Amanhecer, o personagem de Ethan Hawke conhece a personagem interpretada pela encantadora Julie Delpy durante uma viagem de trem na Europa. Tomado por um lampejo de coragem que faz inveja a todos que deixaram um oportunidade passar na vida, Jesse convida Celine para uma aventura: passar a noite juntos, andando sem rumo por Viena, até a manhã seguinte, quando ele voará de volta pros EUA. Ela aceita e os dois vivem uma noite mágica, passeando por uma cidade deslumbrante, se conhecendo, encontrando personagens estranhos e se apaixonando um pelo outro. Ao final da noite, o inevitável acontece e os dois tomam caminhos diferentes, com a promessa de que se encontrarem no mesmo lugar, em exatos seis meses.
Enquanto muita gente esperou anos pela continuação do filme para saber o que aconteceu a Jesse e Celine, esperei minutos para descobrir que os dois não se encontraram seis meses depois. Em Antes do Por do Sol, Jesse está em Paris para divulgar um romance que conta a história que viveu em Viena e Celine acaba encontrando ele. O que parece ser acaso, vai se revelando um encontro premeditado à medida que os dois colocam o assunto em dia e eventualmente confessam um ao outro que nunca tiraram aquela noite de suas mentes. E que não conseguiram ser felizes, em grande parte, por conta disso. O filme, curto, nos delicia com esse reencontro para, mais uma vez, deixar o final em aberto.
Ao final dos dois filmes, fica a pergunta: e se eles não tivessem tido a noite em Viena? A responsabilidade de superar algo tão mágico, tão irreal, tão poético, certamente é grande demais para qualquer um e esmagadora para um relacionamento em que se vivem as pequenas alegrias do cotidiano, mas também os percalços. É impossível se comparar àquela noite. É impossível se comparar à poesia e ao romance. É impossível se comparar à felicidade dos comerciais de margarina (que são, confesso, o meu ideal pessoal de felicidade). Será que a poesia não acaba destruindo a realidade? Será que, sem parte das idealizações românticas e das enormes expectativas que todos carregamos, não seríamos mais felizes no mundo real? Ou será que o mundo real e os relacionamentos não teriam a menor graça sem tudo isso? Se um dia eu tiver a resposta, prometo compartilhar.
5 comentários:
Realidade e poesia são complementos... você pode descrever uma realidade poética ou idealizar uma poesia real... difícil desvincular uma coisa da outra. Sem poesia não há romance e sem romance não há poesia...
Caro amigo cinéfilo,
Concordo com teus questinamentos, e confesso que os levo para o travesseiro quase todos os dias.
Mesmo sabendo das terríveis consequências que a poesia pode trazer ao meu cotidiano, jamais abrirei mão dela.
Atos poéticos possuem duas vias: âncoras ou portais. O que nos cabe é estar com os pés na "realidade" e tomar a decisão certa.
Concordo com você sobre as idealizações que acabamos fazendo em todas as relações. Não acredito que, em nível de realidade e poesia, uma começa onde a outra termina. Mas que a experiência de ambas propicia a construção do significado daquilo que é vivido, seja na fantasia ou na realidade. O mais importante, acredito eu, é compreender o que é possível ou não viver dentro desse contexto fantástico.
Diogo...
parabéns pelo blog...
eu adorei...
Pode ser sim...que a poesia de uma certa maneira acabe com a realidade...pois a realidade às vezes...ou muitas vezes...é crua...é dura...e a poesia é um refúgio...que nos faz idealizar de algum modo as relações...mas ao mesmo tempo...toda tudo mágico...
ou será que somos nós que colocamos magia em tudo...
já não sei mais...
Só sei que não gostei da continuação do filme...ficou piegas...para mim...
Beijos
Leca
Eu acredito que o tempo faz a realidade virar poesia. Quantas vezes nao nos pegamos pensando em quanto delicioso um momento foi meses depois de ter acontecido, sem mesmo nos dar conta do sentimento de prazer no exato momento. Penso que o que destruiu os personagens nao foi a noite em si, mas sim os meses seguintes relembrando e revivendo que acabaram transformando aquela noite em uma noite extremamente romantica. A nossa consciencia eh que toma conta de tudo isso. Por isso o melhor eh estarmos conectados com os nossos sentimentos o maximo possivel :)
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